Vida natural

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

“Os Cão”: reflexão sobre o bloco que garante a folia da terça-feira na Redinha

Hoje, às 10h, a grande atração da Redinha é o bloco "Os Cão"(assim mesmo, artigo no plural, com substantivo no singular). A concentração acontece no mangue do Rio Doce, início da Ponte Newton Navarro. De lá, os foliões vão até o mangue pegar seus abadás e saírem pelas ruas e orla marítima. Impossível ficar indiferente a sua passagem. Os familarizados com a brincadeira ficam contagiado, os que ainda não conhecem sentem uma espécie de espanto, enquanto os que não gostam da brincadeira encontram mil e uma maneira para rechaçá-lo, com bando de desocupados, vândalos etc.
Mas, imagino, uma das grandes perguntas para as mentes mais reflexiva é de como surgiu esta brincandeira. Corre uma enda que "Os Cão" surgiu de uma experiência solitária de um folião das bandas da Salgadeira, que no final da década de 1950 vagava pelas ruas do bairro da Cidade Alta completamente embriagado e coberto de lama do mangue, tocando um reco-reco (foda-se o acordo ortográfico) cuja mola era distendida numa lata de "óleo benedito", cortada ao meio, friccionada por uma vareta de ferro marcando ritmicamente o único refrão: "Óia o cão... óia o cão... óia o cão, jaraguá!!!" Não tinha menino sambudo que ficasse por perto. Era o próprio "cão" em figura de gente!Outros nativos, contam que "Os Cão" surgiram de uma prática em que pescadores e desempregados, sem ter recursos para brincar o carnaval idealizaram atacar os veranistas em suas casas. Um grupo se lameava e ao chegar em frente ao portão da casa da praia onde os ricaços estavam se banqueteando,estes pediam uma doze de bebida e um tiragosto. Sentindo a amaeça de terem suas casas enlameadas, o proprietário já guardava um porção de bebida e outra de tiragosto para os foliões nativos.
Além destas duas lendas giram outras.Acompanho "Os Cão" desde de 1978, quando presenciava um grupo de pouco menos de 50 pessoas saírem na praia enlameado, com uma criança numa rede de pesca pedindo bebidas nas barracas e famílais que levavam comida e bebida para a Redinha. Até os anos 70, a praia era pouco explorada e seus frequentadores se dividiam em nativos que em sua maioria vivia da pesca, abastados que tinha casas de veraneio, e algumas família humildes (hoje denominadas de farofeiros)que faziam pique-nique.
O que pude observar é que a brincadeira começou a tomar corpor a partir dos anos 80, principalmente quando um grupo de intelectuais começaram a frequentar a Redinha. Entre eles estava o jornalista Vicênte Serejo, professor do Curso de Comunicação Social da UFRN, e editor do Diário de Natal. Serejo, escrevia diariamente uma coluna intitulada "Cena Urbana", o qual comentava o cotidiano de Natal, e nas férias, da Redinha, praia que declaraca ser um dos grandes amores de sua vida. Inclusive publicando um livro com fotos de pescadores, a igrejinha, etc.
A partir daí, várias matérias começaram a ser publicado no Diário de Natal, depois na Tribuna do Norte sobre a alegria do carnaval da Redinha, sendo "Os Cão" a grande atração.
A partir daí, o bloco dos excluídos da Redinha começava a ganhar novo estatus. A intelectualidade começou a querer conhecer o bloco, inclusive com turistas vindo de outros Estados somente para se lamearem na Redinha. No final da década de 80, estava fazendo faculdade e, incentivado pela Sílvia Serejo, eu e outros colegas do curso também entramos no mangue. Naquela manhã de muita lama, tive a oportunidade de conhecer um casal de sociólogo gaúcho que também se meteram na lama para vivenciarem uma espécie observador participante. Também constatei outros participantes, como médicos, artistas, etc.
Além do mais, é bom lembrar que nas décadas de 70 a 80, o Brasil passava por transformações políticas e culturais. O discurso intelectual valoriza as manifestações tidas com genuinamente populares. Ou seja, aquilo que era produzido sem a presença da elite administrativa, ligada ao militarismo. Irreverente, "Os Cão" agradava as pessoas de espíritos brincalhões, mas também os adeptos do anarquismo e do socialismo. No fundo, o bloco tipicava uma rebeldia ao carnaval elitizado, conceito muito aceito pela intelectualidade.
Os tempos mudaram, as doutrinas póliticas nos dias atuais estão praticamente mortas. Porém, a irreverência e a descontração ainda encarna o espírito desta troça. Os jovens dos anos 70 e 80 hoje são velhos. O modelo cultural e econômico contemporâneo é essencialmente de consumo. O tempo de se viver o essencial passou, resta agora o prazer momentâneo. "Os Cão", ao meu ver, sobrevive pela farra,ou pelo "fusuê". Um grupo muito restito está ligado aos fundamentos. Digo isto porque faço uma espécie de pesquisa solitária sobre esta questão. Ontem estive com meus filhos na ruínas de São Miguel, em Extremoz. Mesmo já estando concluindo o ensino médio, desconhecem aquele rico patrímônio histórico e cultural. Tento lembrá-los, mas, faço minhas as palavras do líder religioso judaíco, João Batista, em que declarou: "Sou uma voz que fala no deserto". Ou como diz o teólogo Ricardo Gondim, a maior preocupação de ficar velho não são as rugas do rosto, mas se tomar conhecimento de que toda a sua forma de pensar sobre o mundo não tem mais sentido. Ou seja, somos viúbos da vida, pois como defende Rubens Alves, a estabilidade matrimonial não está na cama ou na mesa, mas na afinidade de pensar do casal, na satisfação de encontrar no outro a sua mesma fala.

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